sábado, julho 05, 2003

Nos Mártires da Pátria



Vou até ao Hospital dos Capuchos marcar uma consulta. “Venha amanhã, hoje estivemos em greve de manhã e não se marcam exames de tarde.” O que vale é que perto do hospital acolhe os doentes o jardim do Campo dos Mártires da Pátria.
São 1630 da tarde. Densidade enorme de tristeza por metro quadrado de bancos do jardim.
Leio no sopé de uma árvore velha:

Tu que passas e ergues para mim teu braço
Antes que me faças mal, olha-me bem
Eu sou o calor do teu lar nas noites frias de Inverno
Eu sou a sombra amiga que tu encontras
Quando caminhas sob o sol de Agosto
E os meus frutos são a frescura apetitosa
Que sacia a sede nos caminhos
Eu sou a trave amiga da tua casa, a tábua da tua mesa
A cama em que descansas e o lenho do teu braço
Eu sou o cabo da tua enxada, à porta da tua morada,
A madeira do teu berço e do teu próprio caixão
Eu sou o pão da bondade e a flor da beleza
Tu que passas, olha-me bem e não me faças mal.


Tranquiliza-te, árvore! Não te faço mal e vou olhar bem em redor.

O que há de vivo? Crianças, pombas, três garnisés atrás de galinhas. Debaixo de uma árvore, duas mesas de sueca de reformados. Ainda dizem que não cuidam dos reformados. Há um letreiro que atesta: “Árvore classificada de interesse público. Moraceae. Ficus benjamina l. Fico. Regiõe tropicais.” Uma outra árvore: “Árvore classificada de interesse público no D.GOV. IIª série 121 – 21.5.1968. Família:TAXACEAE; Nome científico: Taxus bacata l.; Nome vulgar: Teixo; Origem: regiões temperadas do Norte; Altura: 11 m ; Altura: 11,1. Medidas feitas em 1.1.91. Não sei quanto alargou a copa da árvore na última década, mas creio que dá sombra para outra mesa de bisca lambida.
Do lado (Este? Não trago bússola comigo...) do jardim, seis carros de transporte de carga com aspecto de há muito ali estacionados. O dístico nas carroçarias fechadas, folgosa, tanto contrasta como condiz com a apatia da greve. Transporte de folga (de folga, descanso, ou folga, folguedo, ou com folga nos pistões?...) Mas o logótipo é verde, uma esperança de movimento dos mártires da pátria.

Sons: cantam galos, arrulham pombos, gritam crianças, ressonam velhos, resmungam os sem abrigo.

Atravesso, sempre sem bússola, para o outro lado do Jardim. O Campo Mártires da Pátria polariza à sua volta uma significativa concentração de elementos decadentes do corpo e do espírito da pátria: o instituto de medicina legal e a morgue, hospitais, hospícios, institutos de bactérias, doenças dos olhos e maleitas do espírito, asilos e até a toponímia primitiva não desdenha. O espaço antes chamava-se “Campo do Curral por aí se fazerem as matanças de gado para o abastecimento da cidade”, e o nome actual, mais heróico, mas não menos bestial e sangrento, deve-se ao enforcamento que aí se fez dos presumidos autores da conspiração de 1817 contra o domínio inglês de Beresford. E a praça de touros, também mártires para os protectores dos animais, era ali antes de passar para o Campo Pequeno. E não esqueçamos o monumento a Sousa Martins, um santuário da crendice popular: mártires e remédios da mesma pátria.
O único apelo visível de algum progresso é alemão: Mercedes e wolkwagens de gama alta anunciam os serviços culturais da Embaixada alemã.

Apresto-me a abandonar os mártires da pátria, as crianças, os jovens, os velhos, trôpegos, desempregados, alcoólicos, mais galos, patos, pombos e cães, uma estufa da memória decadente em ruínas neste dia solarengo.

Espero o 33. “Não espere, porque há greve. Começou às 17 e 30 e vai até às 20 e 30 da noite”.

Greve no Hospital. Greve nos transportes. Já não tenho tempo de ir urinar a casa. Na empena nascente do jardim dois sólidos redentores epigráficos indicam aos “homens” e às “mulheres” que os mártires da pátria podem ao menos aliviar a bexiga. Na porta dos homens encimada pelo ícone de Lisboa em relevo, dois corvos, um na proa, outro na ré da nau de São Vicente, piam boas vindas a lisboetas e forasteiros que se aproximam para descarregar as entranhas. De igual modo sugestivo, colado na parede o anúncio de um festival de outras calendas “saberes, sabores e sons de Lisboa”, cuja sibilância escorregadia ainda mais acentuava a necessidade do alívio que fora procurar nas catacumbas dos mártires.

Procurar em vão. O pio dos corvos soturno avisava: não há mijo para ninguém...
Também eu, um mártir da Pátria.

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