sexta-feira, maio 30, 2003

Tela nua


E se eu fizesse
neste papel
o teu retrato?

Tenho a caneta
- é o pincel
é exacto
neste momento
o acto
da criação.

Há os teus olhos
- é a luz
Há o teu corpo
- tela nua
na minha mão.

E na paleta
brincam as cores
da sedução.

domingo, maio 25, 2003

Chamar as coisas pelos nomes...



Pelos vistos, não é coisa fácil dar um nome à coisa, até porque, afinal, parece que a coisa sem nome não é coisa nenhuma. Daí, os apelos constantes para chamar as coisas pelos nomes. Parece haver um consenso generalizado sobre de que não há duas coisas iguais... E mais: cada coisa no seu sítio, um sítio para cada coisa e, portanto, sempre que se verificar a tentativa de meter duas coisas no mesmo sítio, não estamos a falar da mesma coisa... no mesmo sítio.
Jogo de palavras, mas não só. Trata-se sobretudo de ir ao encontro uma vez mais do real. O real narra-se; não se define, nem se classifica.
É por comodidade, tantas vezes por ignorância, muitas por preguiça da mente ou ainda por disfarçada desonestidade intelectual que a palavra coisa (da mesma família de causa) se transforma no lugar comum estereotipado e estático da realidade, cuja substância é essencialmente dinâmica e, por isso, nunca se esgota no discurso que a narra.
À expressão chamar as coisas pelos nomes, prefiro a de agarrar o boi pelos cornos.

sexta-feira, maio 16, 2003

NUM VERÃO DA MÁ CONSCIÊNCIA DO CRENTE



Poluição, protectores, sol que aquecia antes e agora só queima, um ventre disforme — anda lá, ao menos não exibas a barriga — o pai leva para a praia a cabeça ainda mais poluída do que a praia e como sempre corre atrás das circunstâncias de que se ri no íntimo, mas que consigo transporta e espalha.
O stress aflora à superfície das preocupações e das águas e na areia reduz o espaço para um corpo de cócoras, uma toalha, uns sapatos e lá dentro uns óculos, uma boa maneira de meter os pés pelo nariz e partilhar um metro quadrado do palco de areia — cada veraneante um actor único de uma plateia pejada de actores únicos exibindo-se diante de um público alheio — o rebuliço do espectáculo de Verão, tão certo no calendário como está certa a contradição que lhe levou ali o corpo ritmado pelo pretexto de um passeio à beira mar, cansado de imaginar a esperança de uma diferença.

E de repente o pai refugia-se na igualdade do absoluto: pai-nosso que estais no céu santificado seja o vosso nome…
É! Assim tal e qual: a frase estereotipada da catequese de menino conspurcada pela cultura que acha natural que deus não tenha outra maneira de se manifestar senão pela ausência — e, resignado, “Tu lá sabes por que te ocultas…”
Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu… A terra e o céu, dois lugares e uma só vontade, o império do absoluto?
E porque não reconhecem Tua a vontade de duas gotas por onde escorrega, lenta, entre quatro-olhos, dois rostos e um desejo a maresia inteira do oceano que aporta e se funde no tempero ajustado de quatro lábios, duas línguas e uma boca?
E assim na terra como no céu brinquem as estrelas no prazer instantâneo da fusão dos corpos, pálida fantasia da explosão quente de duas almas a quem acontece no marasmo calendarizado de um Verão a inesperada oportunidade de esgotar o oceano na alquimia de um beijo.

A fome prosaica da hora do almoço. O pão-nosso de cada dia nos dai hoje. Hoje. Eufemismo do pão antecipado no cartão de crédito… Também o telemóvel faz parte do pão-nosso de cada dia. E Deus deu um ao pai, outro à mãe e outro ao filho. O farto sossego da informação guia-os até ao restaurante: o mar serve-lhes o peixe e a terra o acompanhamento. Serve a quem serve. É a fartura ou a fome que está mal distribuída? À mesa readquire sentido o perdoai as nossas ofensas…

Pai, mãe e filho — a família é a última guardiã das convenções da tribo. É o último alfobre da uniformidade dos deveres e dos costumes, o último bastião colectivo da regulação dos afectos. De maneira que se o perdão tiver sentido, compete aos progenitores pedirem perdão aos filhos por serem pais e os filhos aos pais pelos netos que geram.

E não nos deixeis cair na tentação de ocultar o cais anárquico de onde partem sem regresso as velas do vento morte.

E livrai-nos do mal. Ámen.

sábado, maio 10, 2003

Criação sem lei


Gaivotas desenham na cadência azul um bailado branco. E são brancos os novelos de espuma que cavam a areia branda debaixo dos seus pés.
O mar fustiga as rochas e esculpiu na pedra com o capricho dos anos uns sáurios estranhos que vigiam a variação da cor no horizonte calmo.
O homem, só, calcorreia a corda limite das águas de um ao outro braço da harpa que ponteia a surdina musical da baía solitária.
Quantos anos esperaram as rochas pela memória que hoje as transforma em crocodilos do mar? E como era o silêncio antes de se ordenar o som nos búzios?
O homem que anda por ali à procura da solidão primordial é um crente: imagina o mundo antes de haver homens e não concebe a possibilidade de o universo poder existir para ninguém. Procura o radicalmente outro.
O homem pára de vez em quando, absorto. Como era tudo antes da sensibilidade, da inteligência e da memória? Conclui: Era tudo ao deus-dará. – o fascínio da criação sem lei só atribuível a um deus.

quarta-feira, maio 07, 2003

Uns olhos e um rosto



Uns olhos e um rosto
fixos no instantâneo de outros olhos e outro rosto
ambos, anos a fio, quedos no mesmo gesto e no mesmo olhar
que a magia da palavra fixou no riso aberto do primeiro encontro
e revelou até ao infinito relevos, toques, pele, luz
e o mordisco renovado na polpa intumescida
ondulada pela luz da cortina coada na brisa de gargalhadas
entre pasmos humedecidos de soluços brandos,
afogados nos impulsos de corpos confundidos,
leves, lentos, agitados, furiosos
ao ritmo da entrega, e da placidez partilhada do regresso
aos olhos e ao rosto, quedos no mesmo gesto e no mesmo olhar
e subitamente soltos, desprendidos e alheios a um adeus imerecido.

sábado, maio 03, 2003

Dia da Mãe



Mãe, lembrei-me hoje muito de ti e fui aos meus papéis buscar o único documento escrito que sabias fazer: a tua assinatura.

Assinatura da minha mãe


Quando nasceste, na tua e minha aldeia, campónios não iam para escola, e tu também não. Mas quando te apercebeste, à beira do casamento, que havia gente que se identificava através da assinatura de um estranho a rogo de, a determinação de mulher forte que sempre foste levou-te a aprender as primeiras letras para ao menos saber fazer teu nome.

Mãe, nunca mais escreveste nada. Mas eu sei que a tua assinatura testemunha uma grande obra. Por isso a vim colocar na Internet que espero também chegue ao céu onde te encontras.

Apoiado na tua assinatura, grito ao mundo inteiro o meu grande orgulho em ser teu filho.

Fronteira



Lamento meu caro
mas chegaste tarde à ingénua criação
e a realidade é mesmo mesmo a realidade
quando caminhas no ângulo superior direito desse castelo
donde do lado de cá avistas do lado de lá
a indiferença da distância.

Lamento meu caro
mas chegaste tarde à ingénua criação
e a realidade é mesmo mesmo a realidade
de portas e janelas
alçadas na vertente do espaço e da distância
na linha exacta em que do lado de cá
isso se chama lá do lado de lá.

Lamento meu caro
mas chegaste tarde à ingénua criação
e a realidade é mesmo mesmo isso
sem feitiço.

Em Poemastro me confesso