terça-feira, fevereiro 16, 2010

Erro, verdade e mentira


Revejo uns papéis com notas soltas e leio esta frase desgarrada "Hoje é dia de S. Tomás de Aquino!" - E lembrei-me dos anos de 1952/54, 6º e 7º , dia 7 de Março (1953 ou 54?), aula de filosofia, Liceu Nacional D. João III, Coimbra. O professor Gillot, palmada na secretária, interrompeu a lição dum dos estagiários, tão espantados eles como nós, cobaias pedagógicas, com uma solene, arrastada e bem articulada proclamação: - Hoje é dia de S. Tomás de Aquino!. Expectativa espontânea dos alunos: - dia de festa, não há chamadas! O professor: - chamadas, sempre; que melhor honra para S. Tomás? É no falar que a gente se entende. E palavra puxa palavra, o Dr. Gillot ia-nos ensinando que S. Tomás não era filósofo por ser santo, mas sendo santo até os seus actos mais quotidianos de frade carregavam sentenças de grande profundidade filosófica. E contou este: os irmãos de convento testaram a atracção de Aquino pela ocorrência de novidades convidando-o a juntar-se a eles que, debruçados à janela, esticados de pescoço para o céu, estavam a ver uma vaca voar. O filósofo acorreu. Olhou os céus, mas só ouviu as gargalhadas galhofas dos colegas. O santo perdoou, mas o filósofo advertiu que era muito mais credível uma vaca voar, do que um frade mentir.
Não é inocente esta lembrança, cinquenta e seis anos depois: o filósofo avisado sabe que uma vaca não voa; tratar-se-ia de um eventual erro de apreciação de confrades, cuja correcção passaria pela adequação do intelecto à coisa - e por isso Aquino teria de ir ver a "coisa" voar - , mas era absolutamente improvável que um frade, de quem se espera que a palavra seja "sim, sim; não, não" pudesse mentir. O erro é uma falha do intelecto facilmente ao alcance de uma revisão sistemática do pensamento; mas a mentira, caros compatriotas, é uma falha de carácter que só se redime com a confissão expressa da falta.
Para bom entendedor, hoje, nem meia, nem uma, nem academias de palavras bastam. Mas não é de mais esperar uma pitada de carácter, uma simples e derradeira gota de chá de Sócrates, a cicuta.