sexta-feira, maio 16, 2003

NUM VERÃO DA MÁ CONSCIÊNCIA DO CRENTE



Poluição, protectores, sol que aquecia antes e agora só queima, um ventre disforme — anda lá, ao menos não exibas a barriga — o pai leva para a praia a cabeça ainda mais poluída do que a praia e como sempre corre atrás das circunstâncias de que se ri no íntimo, mas que consigo transporta e espalha.
O stress aflora à superfície das preocupações e das águas e na areia reduz o espaço para um corpo de cócoras, uma toalha, uns sapatos e lá dentro uns óculos, uma boa maneira de meter os pés pelo nariz e partilhar um metro quadrado do palco de areia — cada veraneante um actor único de uma plateia pejada de actores únicos exibindo-se diante de um público alheio — o rebuliço do espectáculo de Verão, tão certo no calendário como está certa a contradição que lhe levou ali o corpo ritmado pelo pretexto de um passeio à beira mar, cansado de imaginar a esperança de uma diferença.

E de repente o pai refugia-se na igualdade do absoluto: pai-nosso que estais no céu santificado seja o vosso nome…
É! Assim tal e qual: a frase estereotipada da catequese de menino conspurcada pela cultura que acha natural que deus não tenha outra maneira de se manifestar senão pela ausência — e, resignado, “Tu lá sabes por que te ocultas…”
Seja feita a tua vontade assim na terra como no céu… A terra e o céu, dois lugares e uma só vontade, o império do absoluto?
E porque não reconhecem Tua a vontade de duas gotas por onde escorrega, lenta, entre quatro-olhos, dois rostos e um desejo a maresia inteira do oceano que aporta e se funde no tempero ajustado de quatro lábios, duas línguas e uma boca?
E assim na terra como no céu brinquem as estrelas no prazer instantâneo da fusão dos corpos, pálida fantasia da explosão quente de duas almas a quem acontece no marasmo calendarizado de um Verão a inesperada oportunidade de esgotar o oceano na alquimia de um beijo.

A fome prosaica da hora do almoço. O pão-nosso de cada dia nos dai hoje. Hoje. Eufemismo do pão antecipado no cartão de crédito… Também o telemóvel faz parte do pão-nosso de cada dia. E Deus deu um ao pai, outro à mãe e outro ao filho. O farto sossego da informação guia-os até ao restaurante: o mar serve-lhes o peixe e a terra o acompanhamento. Serve a quem serve. É a fartura ou a fome que está mal distribuída? À mesa readquire sentido o perdoai as nossas ofensas…

Pai, mãe e filho — a família é a última guardiã das convenções da tribo. É o último alfobre da uniformidade dos deveres e dos costumes, o último bastião colectivo da regulação dos afectos. De maneira que se o perdão tiver sentido, compete aos progenitores pedirem perdão aos filhos por serem pais e os filhos aos pais pelos netos que geram.

E não nos deixeis cair na tentação de ocultar o cais anárquico de onde partem sem regresso as velas do vento morte.

E livrai-nos do mal. Ámen.

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