Tal pai, tal filho.
Jesus nasceu para a história já bem adulto. Teria uns trinta e tal anos. Como se teria processado e com que idade teria acontecido o sobressalto íntimo da passagem do sentimento de filiação natural ao de filiação divina? Afirma a Bíblia que Deus é. Assim só, sem nome predicativo do sujeito. O judeu não ousava dizer do Altíssimo o que quer que fosse. Mas Jesus, judeu entre judeus, aparece a chamar-lhe Pai com uma veemência de tal modo inusitada e acompanhada por uma transformação consequente tão radical do próprio comportamento quotidiano que acabou por encantar uns e escandalizar outros. Entregou a vida na encruzilhada desta contradição. Encanto e escândalo perduram ainda hoje. Tantas vezes na mesma pessoa.
Mas todos aqueles a quem ele encantou não mais esqueceram “as palavras de vida eterna” que proferira. Viram-no morrer, mas não acreditaram na morte. Está vivo. O ungido – cristo – ressuscitou. Nós vimo-lo. É ele o Messias.
A afirmação da ressurreição de Jesus fascina-me. Mas tenho pena de não ser dos primeiros a verificar o facto. E, sinal de contradição, gostaria de que essa verificação tivesse acontecido já na posse da convicção íntima que me anima hoje, isto é, a de que a história do Universo e da Vida é um longo processo de espiritualização que passa evidentemente por uma ressurreição que vença a morte, a culpa e a lei.
A minha noção de Deus é fortemente influenciada pela cultura judaico-cristã, através da doutrina católica. Com o judaísmo afirmo que Deus é único, existe e é (sublinho a terceira pessoa do indicativo do verbo ser) aquele que É, criador do céu e da terra, englobando nesta expressão, a ideia de que Deus é um cómodo postulado para que em vez de nada exista algo. Uma espécie de primeiro autor de uma primeira narrativa intitulada Universo e Vida, a sua obra única, edição única e tiragem única inesgotável, irremediavelmente irresistível aos cinco sentidos e... ao sexto.
Trago também comigo ideia de que há um povo de Deus, o povo que o reconhece como sendo aquele que é, e, tendo em conta o relato mítico e poético da Bíblia, credito a minha simpatia ao povo do Sinai por ter trazido até mim o exemplo da fidelidade de Abraão à voz que o convidou a embrenhar-se na aventura de procurar fazer florir o deserto.
E com Jesus habituei-me a chamar a Deus pai. É realmente impressionante a intimidade com que Jesus chama pai ao Deus de Abraão, de Moisés, de Elias, Isaías e demais profetas, ao Deus de David e Salomão, ao de João, o baptista, esses e muitos mais, guias, mentores, chefes, profetas, mensageiros de gerações, cujo convívio privilegiado com Aquele que É permite hoje honrá-lO sob a invocação de um único Pai-nosso. Chamava-lhe pai, porventura papá, certamente, paizinho. Quem assim trata um Deus tem direito à primogenitura divina. Tal Pai tal Filho: nesta perspectiva é até fácil de entender que o Filho seja consubstancial ao Pai, gerado e não criado. E como não há dois sem três, nem enigma sem mistério, a trama narrativa do Universo e da Vida é igualmente fácil de entender através da minha própria esperança de participar das trocas amorosas entre o Pai, o Filho e o Espírito, a necessária trindade, pressuposto do rodopio inicial da engenharia genética do Amor.
Adivinha-se a influência judaico cristã, via doutrina católica? Arrasto desde a meninice o meu catolicismo com perplexidade crescente. Enquanto os apóstolos e os íntimos acreditaram na redenção ao vivo não se preocuparam com a teologia para nada. Bastou-lhes o testemunho da fidelidade a essa loucura para fazer crescer a esperança. Contudo, os fiéis apesar de fazerem finca-fé iam duvidando. Os apóstolos foram envelhecendo, seus continuadores também e a comunidade não resistiu à tentação de caucionar com teologias, celebrações e ritos a adoração ao Pai que o Filho aconselhara a fazer não aqui nem ali, nem no monte nem no Templo, mas em Espírito e em Verdade.
Até os Evangelhos e as Epístolas respondem a essa tentação, quanto mais outros escritos subsequentes do cristianismo nascente: servem-nos o testemunho de Jesus embrulhado em sentenças readaptadas ao caldo dialéctico das experiências, êxtases, mitos e razões das margens do Mediterrâneo de onde então emergiam as ânsias cansadas de esperar na história a libertação prometida para amanhãs adiadas.
E foi assim que o Espírito e a Verdade se fizeram doutrina, cada cabeça cada sentença e que não se resistiu à tentação e ao escândalo de também separar os corações. Três séculos depois da palavra liberta e libertadora de Cristo, entenderam “canonizá-la” - o credo de Niceia - uma teórica, douta e desenraizada lenga-lenga que, à medida que se desenrola, mais nos embrenha na dúvida.
E a doutrina fez-se dogmática. Em nome de Deus e de Jesus, seu cristo, abriram-se prisões, cadafalsos e fogueiras.
Permitam-me, caros amigos, este desabafo de um crente envergonhado. Mas não posso deixar de reconhecer que a sedução de um Jesus Redentor me chegou através da história trágica dos crentes e das instituições que os enquadraram e ainda enquadram, feita afinal de pecados e virtudes em marcha, a caminho da uma utopia mobilizadora que eu vejo, com e como Jesus, na adoração do Pai (que também é Mãe) em Espírito e em Verdade.
E quem é o pai? E quem é o filho? E quem é o espírito? O Amor, a gratuidade pura de um tal pai tal filho.
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