domingo, agosto 22, 2004

… quem tenha ouvidos, ouça



De vez em quando lembram-nos que a culpa morre solteira. Agora é a propósito das cassetes alegadamente roubadas…
É óbvio que a culpa está condenada a morrer solteira. É caso para perguntar: quem é que quer casar com uma gaja dessas? Só por amor. Direi mesmo, só por muito Amor, o tal só ao alcance de Deus.
É, aliás, por isso, que a teologia casa Jesus com as culpas todas da Humanidade, a ponto de um santo não sei quem ter exclamado mais ou menos isto: Bendito pecado que nos deu um tal Redentor.
Como se trata de cassetes, obviamente para serem ouvidas, fui buscar para epígrafe deste meu post, outra óbvia sentença evangélica: quem tenha ouvidos, ouça.
Ouvirá, pelo menos, muitos bodes expiatórios a berrar…

domingo, maio 02, 2004

Dia da Mãe



Para ir até ao Sousa Bastos, o cinema, subia-se ou descia-se, conforme o ponto de partida, calçadas, escadas, muitas pedras e pedrinhas, ruas envergonhadas do sol, vielas por onde ainda circulava a tacanha sombra medieval da vida universitária coimbrã. Éramos quatro, amigos deambulatórios de dias e horas displicentes, ocupantes desordenados e distraídos de degraus e muros baixos, à espera que abrissem a bilheteiras para a última sessão da tarde. O negro da capa e batina, nossas fatiotas de um ano inteiro, absorvia ainda mais a escassa luminosidade vizinha do crepúsculo.

Dou com uma mulher, de costas, que descola a custo as passadas das pedras da calçada aonde a prega o peso de um volumoso molho de cavacas, à cabeça.
Como é possível? Passou à minha beira e não me disse nada? A cabeça colada ao tronco sob o peso da carga o vulto acreditava poder dobrar a esquina próxima sem ser reconhecido: não queria revelar aos colegas a débil estrutura sócio económica da família, susceptível, no seu entender, de envergonhar o convívio aburguesado do filho com os restantes pares, cuja maioria, naquela altura, ascendia ao ensino superior oriunda de camadas sociais abastadas.

O filho chamou-a – Ó Mãe! – um misto de apelo, compreensão e ternura. Teve de voltar o corpo todo para responder ao apelo.

Foi então que um sorriso se desprendeu do rosto de minha Mãe, iluminou as vielas estreitas à volta, aqueceu a alma dos meus colegas, e entrou no meu coração para sempre.

É esse sorriso que hoje devolvo ao Céu, querida Mãe, quarenta e seis anos depois!

quarta-feira, março 31, 2004

Tal pai, tal filho.



Jesus nasceu para a história já bem adulto. Teria uns trinta e tal anos. Como se teria processado e com que idade teria acontecido o sobressalto íntimo da passagem do sentimento de filiação natural ao de filiação divina? Afirma a Bíblia que Deus é. Assim só, sem nome predicativo do sujeito. O judeu não ousava dizer do Altíssimo o que quer que fosse. Mas Jesus, judeu entre judeus, aparece a chamar-lhe Pai com uma veemência de tal modo inusitada e acompanhada por uma transformação consequente tão radical do próprio comportamento quotidiano que acabou por encantar uns e escandalizar outros. Entregou a vida na encruzilhada desta contradição. Encanto e escândalo perduram ainda hoje. Tantas vezes na mesma pessoa.

Mas todos aqueles a quem ele encantou não mais esqueceram “as palavras de vida eterna” que proferira. Viram-no morrer, mas não acreditaram na morte. Está vivo. O ungido – cristo – ressuscitou. Nós vimo-lo. É ele o Messias.
A afirmação da ressurreição de Jesus fascina-me. Mas tenho pena de não ser dos primeiros a verificar o facto. E, sinal de contradição, gostaria de que essa verificação tivesse acontecido já na posse da convicção íntima que me anima hoje, isto é, a de que a história do Universo e da Vida é um longo processo de espiritualização que passa evidentemente por uma ressurreição que vença a morte, a culpa e a lei.

A minha noção de Deus é fortemente influenciada pela cultura judaico-cristã, através da doutrina católica. Com o judaísmo afirmo que Deus é único, existe e é (sublinho a terceira pessoa do indicativo do verbo ser) aquele que É, criador do céu e da terra, englobando nesta expressão, a ideia de que Deus é um cómodo postulado para que em vez de nada exista algo. Uma espécie de primeiro autor de uma primeira narrativa intitulada Universo e Vida, a sua obra única, edição única e tiragem única inesgotável, irremediavelmente irresistível aos cinco sentidos e... ao sexto.

Trago também comigo ideia de que há um povo de Deus, o povo que o reconhece como sendo aquele que é, e, tendo em conta o relato mítico e poético da Bíblia, credito a minha simpatia ao povo do Sinai por ter trazido até mim o exemplo da fidelidade de Abraão à voz que o convidou a embrenhar-se na aventura de procurar fazer florir o deserto.

E com Jesus habituei-me a chamar a Deus pai. É realmente impressionante a intimidade com que Jesus chama pai ao Deus de Abraão, de Moisés, de Elias, Isaías e demais profetas, ao Deus de David e Salomão, ao de João, o baptista, esses e muitos mais, guias, mentores, chefes, profetas, mensageiros de gerações, cujo convívio privilegiado com Aquele que É permite hoje honrá-lO sob a invocação de um único Pai-nosso. Chamava-lhe pai, porventura papá, certamente, paizinho. Quem assim trata um Deus tem direito à primogenitura divina. Tal Pai tal Filho: nesta perspectiva é até fácil de entender que o Filho seja consubstancial ao Pai, gerado e não criado. E como não há dois sem três, nem enigma sem mistério, a trama narrativa do Universo e da Vida é igualmente fácil de entender através da minha própria esperança de participar das trocas amorosas entre o Pai, o Filho e o Espírito, a necessária trindade, pressuposto do rodopio inicial da engenharia genética do Amor.

Adivinha-se a influência judaico cristã, via doutrina católica? Arrasto desde a meninice o meu catolicismo com perplexidade crescente. Enquanto os apóstolos e os íntimos acreditaram na redenção ao vivo não se preocuparam com a teologia para nada. Bastou-lhes o testemunho da fidelidade a essa loucura para fazer crescer a esperança. Contudo, os fiéis apesar de fazerem finca-fé iam duvidando. Os apóstolos foram envelhecendo, seus continuadores também e a comunidade não resistiu à tentação de caucionar com teologias, celebrações e ritos a adoração ao Pai que o Filho aconselhara a fazer não aqui nem ali, nem no monte nem no Templo, mas em Espírito e em Verdade.

Até os Evangelhos e as Epístolas respondem a essa tentação, quanto mais outros escritos subsequentes do cristianismo nascente: servem-nos o testemunho de Jesus embrulhado em sentenças readaptadas ao caldo dialéctico das experiências, êxtases, mitos e razões das margens do Mediterrâneo de onde então emergiam as ânsias cansadas de esperar na história a libertação prometida para amanhãs adiadas.

E foi assim que o Espírito e a Verdade se fizeram doutrina, cada cabeça cada sentença e que não se resistiu à tentação e ao escândalo de também separar os corações. Três séculos depois da palavra liberta e libertadora de Cristo, entenderam “canonizá-la” - o credo de Niceia - uma teórica, douta e desenraizada lenga-lenga que, à medida que se desenrola, mais nos embrenha na dúvida.
E a doutrina fez-se dogmática. Em nome de Deus e de Jesus, seu cristo, abriram-se prisões, cadafalsos e fogueiras.

Permitam-me, caros amigos, este desabafo de um crente envergonhado. Mas não posso deixar de reconhecer que a sedução de um Jesus Redentor me chegou através da história trágica dos crentes e das instituições que os enquadraram e ainda enquadram, feita afinal de pecados e virtudes em marcha, a caminho da uma utopia mobilizadora que eu vejo, com e como Jesus, na adoração do Pai (que também é Mãe) em Espírito e em Verdade.
E quem é o pai? E quem é o filho? E quem é o espírito? O Amor, a gratuidade pura de um tal pai tal filho.

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

O escafandro da razão



Ainda sou do tempo em que os pais festejavam a entrada dos filhos na idade da razão. Quem fazia sete anos era um homenzinho, ia (os bem poucos que iam…) para a escola e para a doutrina, tinha mais trabalho e menos brincadeira, enfim entrava no mundo dos saberes e dos credos através do exercício ufano dos créditos só devidos à pessoa - o homem, animal racional, apenas súbdito do divino todo-poderoso senhor da vida, também ele, o Divino, uma hipótese bem racional para explicar a miúdos e graúdos que do nada nada vem.

Mais coisa, menos coisa, o panorama não se modificou muito. Razão e Fé instalaram-se no areópago da cultura, andaram (e ainda andam?) às turras uma com a outra, esgrimindo aliás os mesmos respeitáveis argumentos racionais, porque ambas procuram o invisível e o que há-de vir e ambas perdem igualmente o entusiasmo quando vêem o que já veio…

Nada a fazer? Cá para mim, a razão é o melhor escafandro para o homem inventariar o real, isolando-se objectivamente dele. O termo inventariar é próximo de inventar. O mundo da ciência é o mundo da ficção. Não é mundo real. Quem se atrever a descer às profundezas de si mesmo e ali, sem medo que o escafandro rebente, se encontrar com o radicalmente outro que o faz ser, voltará à superfície para se encontrar com o seus próximos, os outros diferentes entre si e de si mesmos, irredutíveis aos esquemas da racionalidade que a ficção da igualdade propõe.

Ir ao fundo com o escafandro da razão e regressar ao cimo sem ele, eis a tarefa da fé. A fé, ao contrário do que a razão propõe, obriga ao encontro da realidade próxima, a que transcende o pensamento e… tão simplesmente é a proximidade do mundo e da vida irredutível ao que dele e dela se possa pensar.

Cristo, esse campeão da fé, operava maravilhas quando aproximava o pão da fome e amaldiçoava as figueiras que cientificamente davam figos em tempo de figos, mas não os forneciam quando a boca os reclamava. A figueira deveria estar próxima da fome de figos, como tu e eu devemos estar próximos do nosso próximo.

“Quem é o meu próximo?” A parábola de Jesus é uma marabília da fé contra as razões dos que argumentam não poderem em nome dos deveres da razão parar diante da quotidiana necessidade que, também aqui e agora, o indigente manifesta à beira do caminho.

A ciência abate, perfura ou aplaina montanhas. A fé, move-as. E não te esqueças de que quem mais próximo está de ti mesmo és tu. Ousa respirar sem o escafandro da razão.

quinta-feira, janeiro 15, 2004

Entes e entendidos



O que não faltam são os entendidos. Nisto, naquilo e em tudo. Quanto a isto estamos entendidos. Falta entendermo-nos sobre os entes. A confusão entre entes e entendidos vem de longe (Olá, Parménides!), incomoda o intelecto, mas, paradoxalmente resiste aos esforços (Olá, Sócrates, Platão e Aristóteles!) que a história da razão documenta no sentido de explicitar a mecânica do entendimento (Olá “ismos” greco-latinos e anglo-saxónicos continentais e transatlânticos, antigos, modernos e pós modernos e contemporâneos!), essa mecânica da maiúscula Razão que singulariza o bicho homem em relação aos demais seres do universo e da vida.

O homem estonteado pelos êxitos da racionalidade inventou um método contra natura que reduz os entes a ideados e… nada a fazer, auto proclamou-se “a medida de todas as coisas". De filho do mundo e da vida, tornou-se pai do mundo e da vida – um Deus feito à imagem e semelhança do homem…

Enquanto os homens não conseguirem perceber a irredutibilidade do ente ao entendido, mais e mais se enredam nos vícios filosóficos que impedem a razão de dar conta da transcendência dos seres (e evidentemente da do Ser...), cuja identidade se singulariza na existência, independente da razão que a pensa, dos termos que a expressa, das proposições que a traduz ou da vontade que a manipula.

E não digam que isto não tem importância para o mundo e para a vida: vejam os resultados dos comportamentos humanos quando a razão não respeita nem a singularidade do mundo, nem a singularidade da vida, nem a singularidade do espírito.

O primeiro produto da razão é o rácio. Do rácio ao racismo é um pulo de nada.

quinta-feira, janeiro 08, 2004

O eterno ausente.


Um amigo evocou o meu nome, ao recordar uma memorável noite de Viseu que juntou meia dúzia de carolas que resolveram trocar emoções atrás de emoções e muitas foram as que de uns e de outros arrancámos e a uns e a outros fomos provocando.
Teria então dito, referindo-me a Deus: Senhor, que medo ou que mania da superioridade, Te faz ser tão ausente?
Apetece-me vir a terreiro não para negar ou confirmar a frase, mas para reforçar meu convívio privilegiado com a transcendência.
Convivo tu cá tu lá com Deus e, como lhe retribuo a amizade que Ele tem para comigo, não tendo medo d'Ele, de vez em quando, provoco-O, e... digo coisas semelhantes a essa que o meu amigo agora veio lembrar.
De facto, às vezes apetece-me apresentar Deus aos amigos e a Sua permanente invisibilidade incomoda-me.
Será que nessa noite em Viseu em que eu tanto quis apresentar o meu amigo Deus, me passei da bola e, com mais copo menos copo, O invectivei dessa forma? E aqui para nós já nem sei se Ele lhes apareceu, isto é, se se fez presente, já que eu nunca O deixo de ver na Sua ausência.
É assim, caríssimos amigos, é a ausência de Deus que invade o universo inteiro a mesma que enche toda a minha humanidade. E se sucede meu coração ver-se envolvido pela negrura, esse buraco negro do coração me aponta o grito de Fausto de luz, mais luz.
Meu amigo Deus não me mete medo, liberta-me da lei, da culpa e da morte. Da lei e da culpa já cá tenho a minha conta libertária. Resta-me a saudade da minha própria morte. A morte é para mim o esperado encontro com a ausência. Se o eterno ausente não responder à chamada, é porque não é Amor. E se Deus não for Amor, então, seja o que seja e onde quer que for, não me faz falta.