segunda-feira, junho 23, 2003

Dar com a língua nos dentes.



O sentido mais corrente da expressão “dar com a língua nos dentes” é divulgar um segredo. Mas se com a verdade me enganas, a palavra é também disfarce. Também se diz que a falar é que a gente se entende. Como há gente que se entende entre si e outra não, pelos vistos, nem toda a gente fala da mesma maneira. E como palavra puxa palavra e palavras leva-as o vento, as palavras que se apanham no ar entram e saem dos discursos como em sacos rotos.

Há registos dos significados das palavras, mas é inviável andar com o dicionário à costas a promover o entendimento entre os falantes e os escrevinhadores. Contudo, no caso particular da escrita não é de todo estulta a ideia de viabilizar no começo ou no fim do texto um glossário dos termos utilizados. Aliás, há quem o faça, nas ciências e na filosofia e, como a prática é recente, há dicionaristas especializados que reportam os vocabulários próprios dos vários saberes, e dentro de cada saber, o vocabulário próprio de cada sábio. Também não é por falta de dicionários que os humanos se não entendem, nem por falta de ocasião para dar à língua, agora potenciada pela blogosfera.

Tanto no mundo da fala como no da escrita, não é nada óbvia a garantia de que as palavras que utilizamos correspondam àquilo que elas designam. Pelo contrário, a tendência da análise contemporânea do fenómeno da cultura privilegia o discurso como relação entre termos, embrenha-se no exercício lúdico da construção e desconstrução dos sentidos, faz piruetas nas paralelas assimétricas dos semas e meta semas e goza com a indeterminação labiríntica das estruturas.

No mundo da relação discursiva, a sensação é a de que está a chover no molhado. Embriagado com as palavras, o humano rompeu o contrato espontâneo entre o conceito e o objecto concebido, vive a vida isolada da mente (a imanência), perdeu a aposta com a eternidade (a transcendência), viaja na galáxia artificial da significações e foge a sete pés da imediata expressão da singularidade dos sentidos.

Deixemos então que as emoções dêem com a língua nos dentes...

quarta-feira, junho 18, 2003

Outra vez o umbigo.



Desde que tive conhecimento da etiqueta umbiguismo para classificar os blogs com forte dose de carga afectiva mais ou menos íntima, dei em reflectir sobre o umbigo, o meu bem entendido.

Reconheço que o meu blog se inclui nesta classificação e não enjeito o risco de quem voluntariamente exibe diante doutros o exercício arriscado de se manter em equilíbrio no vértice da pirâmide, cujas vertentes mantêm fronteiras entre a vida íntima, privada e pública.

Não vejo correlação imediata entre olhar para o umbigo e a contemplação narcísica. Esta parece cair na tentação esfíngica de petrificar a própria imagem como centro do mundo. O umbigo, pelo contrário, escapa à função abstracta da imagem e impõe-se como sacramento, isto é, uma realidade visível e exterior de uma graça interior e invisível.

De facto, o umbigo assinala no corpo o fim do convívio simbiótico com a origem e o começo do encontro cada vez mais radical com a solidão a que nem a morte promete a esperança do sossego.

Quem pressionar com intenção sagrada o botão do seu umbigo abre duas portas simultâneas interdependentes que o introduzem na histórica aventura que a humanidade prossegue: a porta do amor e a porta da transcendência.

Do amor, a dádiva gratuita das suas entranhas que a mãe oferece ao mundo. Da transcendência, o nome de deus que o humano fixou para guiar o mundo e a vida à plenitude de ser.

segunda-feira, junho 16, 2003

O meu umbigo



O meu primeiro post é de Janeiro, 10, 2002. Meu blog cabe inteirinho na prateleira do umbiguismo, segundo os critérios de análise da blogoesfera propostos por JPP (é o Pacheco Pereira) no seu Abrupto.

O termo não me escandaliza. Não me tinha era lembrado dele. Como ando com a mania de dar relevo às singularidades, em detrimento dos conceitos específico-genéricos, fui realmente olhar para o meu umbigo.

Um sarilho! Falta-me elasticidade para o ver em directo. Fui ao espelho (fui mesmo, não é força de expressão) e lá estava o buraco na vertente descendente da calote abdominal.

Acho o meu umbigo bem feito, uma cratera pacífica bem desenhada onde não cabe a ponta de nenhum dos dez dedos das minhas mãos (não cabe mesmo, eu experimentei). Mas... ó diacho, se lá não cabe um dedo, e eu me lembro de limpar todos os buracos do meu corpo menos este, será que eu ando com o pipo umbilical cheio de sarro sem dar por isso?

Peguei num “bastoncillo de algodón” (não é força de expressão, peguei mesmo, como se prova pela citação original...) e esburaquei até à profundidade máxima sem encontrar lixo.
Meu umbigo anda limpinho.

quinta-feira, junho 12, 2003

O cão de Pavlov



É razoavelmente conhecida a experiência de Pavlov que provoca o reflexo condicionado do cão que saliva ao toque de uma campainha sem a presença da comida, depois de várias vezes associar o som ao acto de comer. Todo o bom guloso sabe disto quando começa a salivar ao aproximar-se de Belém, não a do Presépio, nem a do Presidente da República, mas a Belém dos pastéis de nata...

Também de Pavlov, mas menos conhecida, é condicionar a reacção do cão à presença de um anel circular perfeito que aos poucos vai tomando a forma elíptica. Quando o cão começa a não poder distinguir entre o circulo e a elipse, rosna irritado.

Não me atrevo a dizer que a irritação dos humanos obedeça a este esquema, mas, confesso, que frequentemente me sinto como o cão de Pavlov, sobretudo diante de um interlocutor que se serve conscientemente de discursos ambíguos para levar a água ao seu moinho. E fico duplamente irritado, quando caio na tentação de fazer o mesmo. O mais popular desses discursos é o “da garrafa meio cheia ou meio vazia”... O mais intelectual é o “da razão e o das razões”...

Eu [segue-se uma argumentação que só a mim responsabiliza, mas se inspira no ensino de Miranda Barbosa, meu professor na Universidade de Coimbra, de 1957 a 1963 e cujo pensamento se encontra in A.Miranda Barbosa, “Obras Filosóficas”, organização e prefácio de Alexandre Fradique Morujão, Colecção Pensamento Português, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa 1996] entendo que só há uma razão, uma ordem fundamentadora do saber que parte de um mínimo de pressupostos aceites para um máximo de explicações cujo caminho pode ser percorrido “step by step” por quem tenha a apetência e a competência para o percorrer. Quando esta ordem se põe ao serviço de uma fundamentação racional e radical do saber, encontramo-nos com a Filosofia a qual deve conformar-se a este método único e irreversível para garantir a unidade do sistema.

E então as razões, “os conceitos de..., segundo fulano...”, isto e aquilo segundo Sócrates, segundo Platão, segundo Aristóteles, segundo Averróis, segundo Aquino, segundo Locke, Berkeley e Hume, segundo Descartes, Leibniz e Spinosa, segundo Kant, Fichte, e Hegel, segundo Husserl, Heideger Sartre e companhia, segundo Russel, Whitehead, e mais este e mais aquele, os proto e os neo “ismos”, medievais, modernos e contemporâneos, de ontem, de hoje e de amanhã?

Em princípio não há incompatibilidade entre as afirmações destes dois últimos parágrafos, a não ser quando se confunde a unidade metódica da filosofia enquanto sistema com os processos de investigação e fundamentação face aos problemas concretos com que se debate o filósofo. Estes problemas não se encontram todos no mesmo plano da realidade (a ideosfera, a ontoesfera, a axioesfera, por exemplo), nem lhes convém os mesmos processos de investigação (a analítica, a noética, a dialéctica, exemplos entre os mais usados dos processos de investigação e fundamentação filosóficos).

Há porém um problema que se vêm arrastando desde Descartes (o divórcio entre o cogito e a realidade extra mental) uma aporia que todos os filósofos têm vindo a elucidar com investigações úteis e argumentos sagazes, mas raramente resolvida, porque cada filósofo e seus seguidores arvora o método particular útil em relação ao processo de investigação em disciplina fundamental da filosofia, caso em que o método se torna inadequado para garantir a unidade metódica de fundamentação racional e radical do saber.

A Filosofia como sistema concebida nos termos que aqui se expõem tem uma exigência primeira: ser filosofia do real, isto é, dar conta racional de que o conteúdo das notas caracterizadoras que distinguem um objecto ideado (existente na ideosfera) corresponda a um ente (existente na ontoesfera, ou domínio existencial da realidade). Diz o senso comum que a realidade existe fora da mente que a pensa. É o realismo ingénuo. A história do conhecimento em marcha dá conta do mundo e da vida antes da existência do humano. É o realismo crítico. Mas, como se disse atrás, o cogito cartesiano abalou os fundamentos do realismo ingénuo e os do realismo crítico. Então, uma sã filosofia sistemática deve encontrar uma fundamentação lógica para o realismo que passa pela aplicação do processo da dialéctica aos resultados da analítica: as singularidades da ontoesfera não são nenhuma anomalia na ideosfera porque o conceito de indivíduo, não tendo conceitos subordinados, não é definível, mas é concebível como conjunto transfinito de notas caracterizadoras.

A filosofia moderna e contemporânea é intrinsecamente idealista: comporta-se como se a realidade extra mental não existisse ou, então, exista como construção da mente. Até os “existencialistas” que dizem partir da existência, acabam por deambular sem sentido no seio das reduções eidéticas propostas pela fenomenologia cuja coerência depende significativamente da decisão metódica que coloca a realidade entre parêntesis. A filosofia moderna e contemporânea é uma ideosofia (termo proposto por Jacques Maritain).Só problematiza; não dá soluções a nada e faz jus à tradicional definição anedótica de que “a filosofia é a ciência com a qual ou sem a qual nós ficamos tal e qual”. E ficamos mesmo. Ou pior: aturdidos e sonâmbulos na galáxia das ideias à solta, onde a palavra e a coisa nunca se encontram.

A primeira vítima do idealismo (a realidade imanente ao pensar) é a história. De facto, a perspectiva histórica exige o respeito pela singularidade do devir que não se define, mas apenas se narra. Como a realidade é para a cultura de cariz idealista uma construção do pensamento, a narrativa histórica solta-se ao sabor de interesses ideológicos, confessados ou não, interpretando os factos até ao ponto de os torcer ao serviço da construção de um passado que a realidade não consente ou até rejeita, e propondo para o futuro uma ordem ideal para o qual nada indica que o presente aponte.

Esta crítica não significa menos apreço pela utilidade intrínseca das investigações processuais nos vários campos do saber que a perspectiva histórica da filosofia nos oferece. Mas a pluralidade de processos que contribui para a solução de filosofemas só ganha capacidade explicativa racional e radical quando integrada num sistema com unidade metódica, isto é, no interior de uma ordem de fundamentação que parte de um mínimo de pressupostos para um máximo de explicações e que, portanto, integra e supera conhecimentos progressivamente.

O cão de Pavlov rosnava, mas habituou-se... condicionado. A cultura actual foge da realidade como o diabo da cruz. Está assim condicionada à ideia que devora ideia e rumina ideia, duplos mentais das coisas que fazem crer que a realidade é uma ilusão.

quinta-feira, junho 05, 2003

Cheguei aqui.



Cheguei aqui a este quarto de quadros e flores atapetado
vindo da Barreira em tarde de figos que matavam fome
empurrado pela mesma cana e a mesma reentrância que colhia os frutos
e empurrava o eixo do triciclo que o Viquinho me deu partido
e o Escabelim forjou como forjou as colheres pequenas de pedreiro
com que construí as casitas iguais às que não tinha
moldadas pelas que deitavam sobre as nossas as sombras delas
e luziam como nossos sonhos de canas verdes
vergadas em corpos e asas de aviões de dois pés
e motores de lábios num frenesim de som que perseguia borboletas
e na fuga desenhavam a metamorfose dos voos em ziguezague
até aqui a este quarto de flores atapetado
morta com o Escabelim a forja da minha infância.

In Poemastro Me Confesso


segunda-feira, junho 02, 2003

Feira do Livro


Imagine entrar na Feira do Livro e perguntar aos visitantes “O que é um livro?” Desconfiariam da pergunta: estão por aí milhares nos escaparates, porquê a pergunta? Ora a resposta não é tão óbvia como parece, e estranharia muito se alguém avançasse com uma definição semelhante a esta: colecção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente. Ou: um livro é a publicação com mais de 48 páginas, além da capa. Ou ainda: obra de cunho literário, artístico, científico, técnico, documentativo etc. que constitui um volume. (Ver Dicionário Houaiss, 1ª ed. Brasileira).

Na minha biblioteca tenho alguns livros, aqueles poucos que escaparam às sucessivas revendas nos saldos dos anos escolares, e mais uns tantos que o continuado sacrifício do ordenado de funcionário público ainda permite. E porque os meus livros se foram assim humanizando em repetidos holocaustos do “pão para a boca” nada neles me faria adivinhar a definição fria do dicionário, objectivamente inerte.

Impõe-se por isso evocar o livro vivo. Vivo na inquieta inspiração do autor que a urdidura do texto desvela; vivo na nervosa perspectiva do editor que as tiragens fazem prever; vivo na atenta afeição do leitor que a dádiva da compra significa.
O livro, o tal produto manufacturado de papel não é senão o objecto-síntese dum mundo de problemas que envolvem autor, editor e leitor e a sociedade onde se movem, problemas comuns tantas vezes em contraditória efervescência centrípeta e que não poupam a tríade na dupla dimensão, poética e prosaica, revelada no sonho e no estômago dos actores do processo editorial.

São os problemas socioprofissionais do autor, hesitante entre o pão dos mecenatos multiformes, as alcavalas dos ócios criadores que certas profissões consentem, o salário irregular de proletário das letras que os direitos de autor prometem. É, pelo lado do editor, o quebra-cabeças dos custos, cada vez mais dependentes das regras estritas do mercado ao arrepio da função cultural do livro a que o Estado nem sempre atende com eficiência e oportunidade. É um público sem hábitos de leitura, mas aturdido sob o bombardeio da leitura consumo que lhe arremessam a granel. São, por fim, os estratos ideológicos que sedimentam na sociedade onde todo este complexo se gera, exprime e auto-alimenta.

O livro, voltemos a recordá-lo, não é apenas uma manufactura de papel, importado ou exportado entre cartolinas e cartões, mas o media que espelha a sociedade viva onde deita raízes, cresce e frutifica.

E poderá o dicionário continuar a registar a definição do livro-coisa, se nos lares, nas escolas, nas bibliotecas, jardins e transportes públicos as gentes se habituarem à companhia do livro-vida.