segunda-feira, junho 02, 2003

Feira do Livro


Imagine entrar na Feira do Livro e perguntar aos visitantes “O que é um livro?” Desconfiariam da pergunta: estão por aí milhares nos escaparates, porquê a pergunta? Ora a resposta não é tão óbvia como parece, e estranharia muito se alguém avançasse com uma definição semelhante a esta: colecção de folhas de papel, impressas ou não, cortadas, dobradas e reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente. Ou: um livro é a publicação com mais de 48 páginas, além da capa. Ou ainda: obra de cunho literário, artístico, científico, técnico, documentativo etc. que constitui um volume. (Ver Dicionário Houaiss, 1ª ed. Brasileira).

Na minha biblioteca tenho alguns livros, aqueles poucos que escaparam às sucessivas revendas nos saldos dos anos escolares, e mais uns tantos que o continuado sacrifício do ordenado de funcionário público ainda permite. E porque os meus livros se foram assim humanizando em repetidos holocaustos do “pão para a boca” nada neles me faria adivinhar a definição fria do dicionário, objectivamente inerte.

Impõe-se por isso evocar o livro vivo. Vivo na inquieta inspiração do autor que a urdidura do texto desvela; vivo na nervosa perspectiva do editor que as tiragens fazem prever; vivo na atenta afeição do leitor que a dádiva da compra significa.
O livro, o tal produto manufacturado de papel não é senão o objecto-síntese dum mundo de problemas que envolvem autor, editor e leitor e a sociedade onde se movem, problemas comuns tantas vezes em contraditória efervescência centrípeta e que não poupam a tríade na dupla dimensão, poética e prosaica, revelada no sonho e no estômago dos actores do processo editorial.

São os problemas socioprofissionais do autor, hesitante entre o pão dos mecenatos multiformes, as alcavalas dos ócios criadores que certas profissões consentem, o salário irregular de proletário das letras que os direitos de autor prometem. É, pelo lado do editor, o quebra-cabeças dos custos, cada vez mais dependentes das regras estritas do mercado ao arrepio da função cultural do livro a que o Estado nem sempre atende com eficiência e oportunidade. É um público sem hábitos de leitura, mas aturdido sob o bombardeio da leitura consumo que lhe arremessam a granel. São, por fim, os estratos ideológicos que sedimentam na sociedade onde todo este complexo se gera, exprime e auto-alimenta.

O livro, voltemos a recordá-lo, não é apenas uma manufactura de papel, importado ou exportado entre cartolinas e cartões, mas o media que espelha a sociedade viva onde deita raízes, cresce e frutifica.

E poderá o dicionário continuar a registar a definição do livro-coisa, se nos lares, nas escolas, nas bibliotecas, jardins e transportes públicos as gentes se habituarem à companhia do livro-vida.

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