Meu aniversário
É uma e catorze de hoje. Há setenta e cinco anos, meia noite menos um quarto, nasci. Recebi um livro de prenda: "Le goût de vivre et cent autres propos" de André Comte-Sponville.
Uma dedicatória: uma oval feita com um movimento único de uma esferográfica; o interior da oval salpicada de pontinhos desordenados. "João Lamas" no meio da oval ao comprido. Legendas para identificar o desenho tosco: Oval, uma travessa; pontinhos, arroz-doce; "João Lamas", letras em canela. No resto do espaço em branco isto:
Esta folha em branco é uma travessa de arroz-doce feita com o carinho e o amor da tua mãe, a minha doce avó Piedade...
O teu nome está escrito com canela que hoje é oiro vivo para te abrir o palato no gosto de viver... 11 Outubro 2010.
E vim aqui registar, olhos embaciados, esta grata emoção: que bom ter sido filho para agora me comover por ser pai.
terça-feira, outubro 12, 2010
domingo, maio 02, 2010
sexta-feira, março 19, 2010
Dia do Pai.
Para ti, Pai, hoje, 19 de Março de 2010, este bilhete. Ando a tentar desenhar no computador, no Excel (não sabes o que é mas eu quando chegar aí explico-te) uma fita do tempo. Na horizontal, coloco os anos e já lá vão setenta e cinco e na vertical de cada ano, semeio uns lembretes, marcos do acontecer de minha vida. No ano de 1935, registei que em Janeiro, 8 fizeste 34 anos; a mãe fez 31, dez dias depois. Haviam casado em 1921. Tens dois filhos vivos: a Lurdes, com nove anos, o Zé com cinco. O primeiro filho, João, certamente gerado após o casamento, faleceu com dois para três anos, ainda vosso filho único. Luto difícil. Contava a Lurdes (olá, Lurdes, é bonito o nosso irmão?) que fora gerada a chorar em mil novecentos e vinte e cinco, o Zé, em mil novecentos e vinte e nove, o consolo descuido para amenizar a depressão de 1929 ou um rebento da esperança do saneamento financeiro do estado novo ainda virgem. Mas agora, em mil novecentos e trinta e cinco, combinaste com a mãe articular as datas dos vossos aniversários próximos e concordaram, na cama, entrelaçar os corpos e sussurrar por entre espasmos de esperança o nome de João, o primeiro filho. E nasci eu em 11 de Outubro de 1935, o primeiro e o último João vosso. Obrigado, Pai. Dá um beijo à Mãe.
Para ti, Pai, hoje, 19 de Março de 2010, este bilhete. Ando a tentar desenhar no computador, no Excel (não sabes o que é mas eu quando chegar aí explico-te) uma fita do tempo. Na horizontal, coloco os anos e já lá vão setenta e cinco e na vertical de cada ano, semeio uns lembretes, marcos do acontecer de minha vida. No ano de 1935, registei que em Janeiro, 8 fizeste 34 anos; a mãe fez 31, dez dias depois. Haviam casado em 1921. Tens dois filhos vivos: a Lurdes, com nove anos, o Zé com cinco. O primeiro filho, João, certamente gerado após o casamento, faleceu com dois para três anos, ainda vosso filho único. Luto difícil. Contava a Lurdes (olá, Lurdes, é bonito o nosso irmão?) que fora gerada a chorar em mil novecentos e vinte e cinco, o Zé, em mil novecentos e vinte e nove, o consolo descuido para amenizar a depressão de 1929 ou um rebento da esperança do saneamento financeiro do estado novo ainda virgem. Mas agora, em mil novecentos e trinta e cinco, combinaste com a mãe articular as datas dos vossos aniversários próximos e concordaram, na cama, entrelaçar os corpos e sussurrar por entre espasmos de esperança o nome de João, o primeiro filho. E nasci eu em 11 de Outubro de 1935, o primeiro e o último João vosso. Obrigado, Pai. Dá um beijo à Mãe.
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quinta-feira, março 18, 2010
A Mulher de César.
Fosse o homem coerente com o que lhe prescreve a razão, ao tentar fazer a história do mundo e da vida ab início, diria que no princípio era tudo menos si mesmo. Mas a coerência com a razão foi ao galheiro e dessa infidelidade hoje bem quista nasceram as razões, filhas ao que parece da mesma mãe - a razão - mas de tantos pais quantos cada cabeça sua sentença. Resultado: uma variedade de "declarações de interesses particulares" a coberto de um discurso pretensamente unívoco, mas semeado de transposições de sentidos que litigantes, causídicos e juízes acordam num acórdão. A mulher de César é e parece sempre séria. Basta que mande para o Senado a seguinte declaração: - "Eu, mulher de César, declaro por minha honra, que durmo com César e só com César; mais declaro que tenho estado na cama com outros homens, mas sempre acordada." E diante de tanta seriedade, rende-se a prudência do juízo fazendo... jurisprudência. E assim sempre anda César tranquilo.
Fosse o homem coerente com o que lhe prescreve a razão, ao tentar fazer a história do mundo e da vida ab início, diria que no princípio era tudo menos si mesmo. Mas a coerência com a razão foi ao galheiro e dessa infidelidade hoje bem quista nasceram as razões, filhas ao que parece da mesma mãe - a razão - mas de tantos pais quantos cada cabeça sua sentença. Resultado: uma variedade de "declarações de interesses particulares" a coberto de um discurso pretensamente unívoco, mas semeado de transposições de sentidos que litigantes, causídicos e juízes acordam num acórdão. A mulher de César é e parece sempre séria. Basta que mande para o Senado a seguinte declaração: - "Eu, mulher de César, declaro por minha honra, que durmo com César e só com César; mais declaro que tenho estado na cama com outros homens, mas sempre acordada." E diante de tanta seriedade, rende-se a prudência do juízo fazendo... jurisprudência. E assim sempre anda César tranquilo.
terça-feira, fevereiro 16, 2010
Erro, verdade e mentira
Revejo uns papéis com notas soltas e leio esta frase desgarrada "Hoje é dia de S. Tomás de Aquino!" - E lembrei-me dos anos de 1952/54, 6º e 7º , dia 7 de Março (1953 ou 54?), aula de filosofia, Liceu Nacional D. João III, Coimbra. O professor Gillot, palmada na secretária, interrompeu a lição dum dos estagiários, tão espantados eles como nós, cobaias pedagógicas, com uma solene, arrastada e bem articulada proclamação: - Hoje é dia de S. Tomás de Aquino!. Expectativa espontânea dos alunos: - dia de festa, não há chamadas! O professor: - chamadas, sempre; que melhor honra para S. Tomás? É no falar que a gente se entende. E palavra puxa palavra, o Dr. Gillot ia-nos ensinando que S. Tomás não era filósofo por ser santo, mas sendo santo até os seus actos mais quotidianos de frade carregavam sentenças de grande profundidade filosófica. E contou este: os irmãos de convento testaram a atracção de Aquino pela ocorrência de novidades convidando-o a juntar-se a eles que, debruçados à janela, esticados de pescoço para o céu, estavam a ver uma vaca voar. O filósofo acorreu. Olhou os céus, mas só ouviu as gargalhadas galhofas dos colegas. O santo perdoou, mas o filósofo advertiu que era muito mais credível uma vaca voar, do que um frade mentir.
Não é inocente esta lembrança, cinquenta e seis anos depois: o filósofo avisado sabe que uma vaca não voa; tratar-se-ia de um eventual erro de apreciação de confrades, cuja correcção passaria pela adequação do intelecto à coisa - e por isso Aquino teria de ir ver a "coisa" voar - , mas era absolutamente improvável que um frade, de quem se espera que a palavra seja "sim, sim; não, não" pudesse mentir. O erro é uma falha do intelecto facilmente ao alcance de uma revisão sistemática do pensamento; mas a mentira, caros compatriotas, é uma falha de carácter que só se redime com a confissão expressa da falta.
Para bom entendedor, hoje, nem meia, nem uma, nem academias de palavras bastam. Mas não é de mais esperar uma pitada de carácter, uma simples e derradeira gota de chá de Sócrates, a cicuta.
Revejo uns papéis com notas soltas e leio esta frase desgarrada "Hoje é dia de S. Tomás de Aquino!" - E lembrei-me dos anos de 1952/54, 6º e 7º , dia 7 de Março (1953 ou 54?), aula de filosofia, Liceu Nacional D. João III, Coimbra. O professor Gillot, palmada na secretária, interrompeu a lição dum dos estagiários, tão espantados eles como nós, cobaias pedagógicas, com uma solene, arrastada e bem articulada proclamação: - Hoje é dia de S. Tomás de Aquino!. Expectativa espontânea dos alunos: - dia de festa, não há chamadas! O professor: - chamadas, sempre; que melhor honra para S. Tomás? É no falar que a gente se entende. E palavra puxa palavra, o Dr. Gillot ia-nos ensinando que S. Tomás não era filósofo por ser santo, mas sendo santo até os seus actos mais quotidianos de frade carregavam sentenças de grande profundidade filosófica. E contou este: os irmãos de convento testaram a atracção de Aquino pela ocorrência de novidades convidando-o a juntar-se a eles que, debruçados à janela, esticados de pescoço para o céu, estavam a ver uma vaca voar. O filósofo acorreu. Olhou os céus, mas só ouviu as gargalhadas galhofas dos colegas. O santo perdoou, mas o filósofo advertiu que era muito mais credível uma vaca voar, do que um frade mentir.
Não é inocente esta lembrança, cinquenta e seis anos depois: o filósofo avisado sabe que uma vaca não voa; tratar-se-ia de um eventual erro de apreciação de confrades, cuja correcção passaria pela adequação do intelecto à coisa - e por isso Aquino teria de ir ver a "coisa" voar - , mas era absolutamente improvável que um frade, de quem se espera que a palavra seja "sim, sim; não, não" pudesse mentir. O erro é uma falha do intelecto facilmente ao alcance de uma revisão sistemática do pensamento; mas a mentira, caros compatriotas, é uma falha de carácter que só se redime com a confissão expressa da falta.
Para bom entendedor, hoje, nem meia, nem uma, nem academias de palavras bastam. Mas não é de mais esperar uma pitada de carácter, uma simples e derradeira gota de chá de Sócrates, a cicuta.
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