segunda-feira, novembro 17, 2003

Das razões do coração



Convém diante do computador libertar as capacidades imaginativas próprias da infância e da adolescência e desencadear os mecanismos intelectuais que lhes são peculiares para, em face do irritante monstro que se não engana, sonhar acordado, auto conscientemente iludido, com uma máquina que não tenha só razão, mas seja apaixonadamente humana.

Passemos, então, a utilizar os ditos mecanismos intelectuais tão próprios da criatividade infantil e adolescente.

Por transferência analógica, tal como o coração é bomba hidráulica, o braço guindaste e o rim filtro, o computador é cérebro. E que cérebro! Coloca gente na lua, guia sondas por entre estrelas, aponta milionários do totoloto mal cai a última bola, e até corrige automaticamente os erros de ortografia.

Mas se assim é, então a cabeça do homem serve para outra coisa: cabelo de ráfia, chapéu às três pancadas, bola de nariz vermelho, rosto de maçãs escarlate, boca que abraça o rosto em arco-íris, olhos onde desaguam rios de rugas, sorri o sol e as lágrimas esguicham, o palhaço é ainda, com os seus disparates, mais símbolo do homem que o computador.

Por identificação do objecto o engenheiro de sistemas descobriu a mecânica da razão: trata-se de uma ridícula soma de zeros e uns, bem como de uma óbvia rapidez de escolha entre alternativas ao par. Pobre razão que aborta diante de uma alternativa fechada e pára inerte à porta do mistério.

Ao findar do século XX, eis que o computador devolve ao homem a certeza de que o pensamento racional é tão só um compromisso rotineiro com a utilidade. Esperemos que a lição lhe baste e ele possa compreender a itinerância do devir e se prepare, descomplexado, para responder ao apelo que a gratuitidade pura lhe grita desde que no princípio o Verbo proclama o risco de existir.

Continua a ser do homem e nunca será da máquina o poder de evocação fantástica, outro mecanismo intelectual, que preside aos mais belos sonhos da nossa infância. O computador povoa as mais delirantes aventuras do mundo dos humanóides. Óptimo! Deixou o homem de poder justificar a auto flagelação diante dos erros quando dá murros na cabeça e grita ai que burro que eu sou. Deve antes comprar um cacete de espuma (é um hardware... soft) e desancar o cérebro electrónico sem o ferir: burro é ele, o computador, quando zurra beep, beep, porque lhe falta a memória ou se encontra com uma instrução imprevista!...


NB. Cá me vou repetindo fazendo o vai-vem entre o que há muito escrevi ali e agora vou pondo aqui.