sexta-feira, agosto 30, 2002

Nem tudo o que luz é oiro


A propósito da cimeira de Johannesburgo, li um texto de CARLOS VOGT, Presidente do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Unicamp.
De todo o longo e útil texto retenho: "... não basta decompor analiticamente o todo em suas partes para chegar à plena compreensão de seu funcionamento".
O fascínio da ciência, (a luz da modernidade), leva a supor que sim, isto é, que basta decompor o todo em partes para depois arranjar uma explicação das coisas... decompostas. E como a explicação resulta, (o oiro da modernidade) conclui-se muito cientificamente que o que ainda não tem explicação aguarda melhor oportunidade para se... decompor e... finalmente ser explicado. E de decomposição em decomposição, isto é, de explicação em explicação, TEMOS O AMBIENTE QUE TEMOS, MAS NÃO SOMOS O QUE GOSTARÍAMOS DE SER.
Insisto: ser ou ter, eis a questão. Será que ainda há tempo (e se houver tempo, ainda haverá coragem?) de deitar fora o supérfluo acumulado e reaprender a gostar de ser amante despojado da vida? Dizem que nem tudo o que luz é oiro, mas parece que tudo o que balança, cai.

quarta-feira, agosto 21, 2002

O sexto sentido.


Embora se diga que contra factos não há argumentos, o homem é um exímio aldrabão dos sentidos. Tem cinco sentidos, mas é com um sexto, (pelos vistos todos têm um, mas ninguém sabe como opera...) que ele elabora os argumentos contra os factos. Os outros animais não possuem este olhómetro e, por isso, obedientes ao relógio de seus ritmos biológicos, arrumam-se na vida conforme os instintos, e se alguns a eles escapam, é porque os homens os submetem às tropelias da domesticação e às fantasias que evocam nas histórias do tempo em que os animais falavam os envergonhados êxitos e frustrações da humanização da natureza.
Como em terra de cegos quem tem um olho é rei, o homem é o rei dos animais graças ao sexto sentido – o tal olho suplementar que nós temos e eles não. A bem dizer, o sexto sentido orienta o homem de forma a reduzir os outros cinco à expressão mais simples, simplesmente dispensáveis: às tantas, não são precisos olhos para ver, ouvidos para ouvir, mãos para apalpar, boca para saborear e nariz para cheirar. Nem a realidade é necessária, porque o sexto sentido navega como peixe na água na realidade virtual.
Na realidade virtual, o corpo vai para o galheiro, mas ressuscita e pirilampa por entre tufos de “bites” ordenados pela mestria dos algoritmos que colocam ao alcance de um digito humanóide a promessa profética de uma Jerusalém Celeste, finalmente invertida a contento do sexto sentido do homem: enquanto no Éden dos édipos a utopia redentora é o mundo da inocência, quiçá da ignorância, no Ciberespaço, a versão digital da ubiquidade dos contrários desenha um mundo de saber e de inteligência perpétua...
Estaremos condenados pelo sexto sentido a ser deuses? Pelo sim e pelo não, fia-te na Virgem e não corras e verás o trambolhão que levas...

segunda-feira, agosto 12, 2002

O verso e o reverso da medalha.


Quando se deita uma moeda ao ar é para saber se é cara ou coroas. Apanhamo-la na queda, espalmada entre mãos, e a sorte é determinada pelo primeiro a escolher, a mão direita ou a esquerda, cara ou coroas ou vice-versa. O truque de a apanhar no ar entre mãos é para evitar, não vá o diabo tecê-las, que ao cair no chão, a moeda se ponha a rolar e vença definitivamente a inércia sem verso nem reverso. Se assim fosse, não haveria sorte para ninguém – pelos vistos, o desejo do diabo.
Sorte para todos é desejo divino. Desconfio que ainda não é o programa de todos os homens: há sempre quem queira um pouquinho mais de sorte para si do que para os outros... Mas homem é bicho de fé. Se não em Deus, pelo menos na ciência, cujo fascínio o leva a acreditar de que é possível e plausível ter, simultaneamente, sol na eira e chuva no nabal. Só que até ao momento as soluções ditas científicas também obedecem à lei do verso e do reverso da medalha...

domingo, agosto 04, 2002

A alma do negócio


Confundir a certeza com a verdade é vulgar. Mas há uma diferença muito grande: a verdade é; a certeza tem-se. A confusão entre uma e outra corresponde à confusão entre ser e ter. A certeza passa pela apropriação da verdade para uso exclusivo. É o domínio dos pronomes pessoais e dos adjectivos possessivos – o segredo, a alma do negócio, a luta pela vida.
A verdade requer a transcendentalidade do objecto. É o domínio do nome predicativo do sujeito que actualiza aqui e agora a utopia mobilizadora de que o homem carece para ser. A verdade diz-se. Proclama-se aos quatro ventos. A verdade mostra-se. Quem a encontra sabe muito bem como mostrá-la ou escondê-la. É fácil reconhecer a verdade: basta que quem a encontre mostre o caminho que percorreu para lá chegar e revele a “senha” do código que utilizou para a conhecer. A verdade é. Não se possui. Ninguém tem a verdade. O que as pessoas têm são certezas. Muitas. A cada um sua certeza, a sua própria alma do negócio...

sábado, agosto 03, 2002

O primeiro homem.



Parece que agora temos outro primeiro avô: - o Sahelantropus tchadensis. Foi desenterrado no deserto de Djurab uma caveira parecida com o crânio de um homem, mas com volume para a massa cinzenta de um chimpazé. Será de facto o crânio do primeiro macacão que disse pela primeira vez à sua macaca olha que isto de ter cio todo o ano obriga a pensar duas vezes antes de?... Mais crânio, menos crânio, pouco importa. São ossos do ofício de antropólogo. O que eu gostaria mesmo de ouvir era a primeira conversa de nossos macacões avoengos.

sexta-feira, agosto 02, 2002

O outro mundo...


O caminho é o espaço entre duas camas: a cama da mãe e a cama da morte. É o caminhante que vai fazendo o caminho. Mas o chão tem uma prioridade absoluta sobre a mãe, a morte, o caminhante e o percurso. Nada a fazer, pelo chão ou pelo ar, este mundo já cá estava quando o homem deu por ele. Se tem uma noção de passagem, de um outro mundo vem e para outro mundo vai. Não seria nada mau que regressasse ao mundo de onde veio: o da inocência.