quinta-feira, março 28, 2002

Razão antes do tempo...


A razão vem sempre antes do tempo. E não espera pelo tempo para lhe dar razão. Aliás, o homem não aprende nada com a razão porque a tem sempre toda antes do tempo. A característica fundamental da razão é mesmo a de desconfiar do tempo. Os irracionais só cometem um erro uma vez e de cada vez: gato escaldado de água fria tem medo. Mas o homem, esse racional inveterado, como anda com a razão o tempo todo, nunca perde uma ocasião para demonstrar por a+b que errar... é humano. E de erro em erro, nunca perde a razão: - presunção e água benta, cada qual toma a que quer. Sempre, até haver água e quem a benza...

quarta-feira, março 27, 2002

Uma mente brilhante


Fui ver o filme. É a história de John Forbes Nash Jr. que em 11 de Outubro de 1994 ganhou o Prémio Nobel da economia pelos seus trabalhos de matemática no campo da teoria dos jogos. Nash, com vinte e um anos de idade, mostrou como construir cenários matemáticos nos quais se pode verificar, numa competição, a vitória de ambos os lados. Foi o que a economia quis ouvir. Os economistas transformaram a teoria dos jogos num instrumento e hoje só se ouve falar em economês competição, competição, competição. Tudo graças a Uma Mente Brilhante – a de Nash.
Depois... a esquizofrenia. Deu em ouvir vozes e em dar estatuto de realidade ao que se passava tão só na sua mente brilhante. Pretendem os psicólogos freudianos explicar estes desarranjos mentais, dizendo que o casamento e a gravidez da mulher teriam conduzido a mente de Nash a perder a capacidade de distinguir sensações e razões, de ordenar o seu vasto campo de emoções. Mas ainda bem que casou: a mulher perdeu um amante; mas Nash não perdeu uma esposa. Graças a ela, a mente brilhante voltou a verificar que o que é real na vida é o encontro de dois corpos numa carícia, é a fragrância de um filho fruto da dádiva e não a fruição de um produto ordenado pelo jogo matemático da competição.
E no fim foi a uma mente brilhante que a Academia do Nobel deu o prémio, mas foi uma mente bonita (A Beautiful Mind) que o recebeu.

quarta-feira, março 20, 2002

ri melhor quem...


Como poderá o homem um dia achar irrisória a divindade sem se encontrar com o deus do riso?

terça-feira, março 19, 2002

Vem lá o pai.


Eu lembro-me onde e quando apareceu meu pai. Era de noite, não havia electricidade, e minha casa tinha nas traseiras uma varanda. De lá se avistavam, ao longe, a dois quilómetros ou mais, pirilampos de lanternas lentas que tracejavam a esperança de quem no escuro da aldeia aguardava um caminhante vindo da cidade.
Minha mãe procurava fazer coincidir a cozedura da broa com a folga semanal do marido, aleatória sucessão rotineira de caprichos do calendário que ritmava seus encontros semanais.
- Vem lá o pai!
- Onde?
- Passou agora na Fonte da Nogueira.
- Ora! Como é que sabes, daqui, tão longe.
- Eu conheço a luz da lanterna de carbureto da bicicleta do pai.
E era. Meu pai vinha atrás dessa lanterna que meus olhos nunca mais esquecem. Meu pai foi essa lanterna que de minha memória se não apaga. Meu pai é essa lanterna que eu hoje, Dia do Pai, doo aos filhos do mundo inteiro.
Querido Pai, o beijo que hoje depositei na lanterna velha que ainda guardo não é só meu: é de todos os filhos que esperam, seguem, guardam e devolvem a chama das lanternas que são seus pais.

domingo, março 17, 2002

Humor, sexo e Deus


Quem se embrenha na Internet verifica, a olho nu, que os temas humor, sexo e Deus estão entre os mais procurados da Web. Há quem veja nisto uma prova da subversão de valores: poucos curam de coisas sérias; muitos andam atrás das inutilidades.
Eu julgo que quem assim pensa corre o risco de se enganar: humor, sexo e Deus têm de comum o apelo à transcendência.
Vejamos. Normalmente, antes de se contar uma anedota, os parceiros envolvidos na representação são convidados pelo contador ao recolhimento da escuta – então, já sabem da última... – e o grupo distancia-se voluntariamente dos afazeres para saudar com uma boa gargalhada a entrada no mundo dos prazeres gratuitos, até que um companheiro acorde os outros para a rotina dos interesses – pronto, já chega, vamos ao trabalho... O sexo também exige um corte com o mundo: a procura da intimidade do outro é um convite à partilha de entranhas que catapulta os corpos até aos limites da perca dos sentidos – a dádiva gratuita do orgasmo. E Deus só se acha no corte radical que se opera entre a mente e a imanência do mundo e da vida – um apelo à gratuidade pura que transcenda a transhistoricidade da memória.
Humor, sexo e Deus apelam à transcendência, um corte com a realidade. É algures nos interstícios da gratuitidade a que apelam que se encontra o critério para distinguir o humor do sarcasmo, o sexo da pornografia e o sagrado da religião.

terça-feira, março 12, 2002

... o inimigo do bom


Sempre ouvi dizer que o óptimo é inimigo do bom. Se o amigo do meu amigo, meu amigo é, a sentença contrária (o inimigo do meu inimigo) também. Confessam os óptimos que não gostam dos bons; avisam os bons para os perigos do óptimo. Óptimos e bons são maus entre si. Resta-nos ter confiança nos medíocres. Isto é, na hora da decisão venha o diabo e escolha... A propósito: no domingo há eleições.

quarta-feira, março 06, 2002

Ladrar ou morder pela calada?


As caravanas passam, todas iguais: carros, bandeiras, altifalantes. Vêem-se, mas quem os ouve? Cães que ladram? Mas não mordem? No dia das eleições, civicamente, no silêncio das urnas, ninguém é nómada, a caravana pára, palhaços e circo, artistas e bichos, ordenadamente, todos igualmente crentes, põem o voto na urna... Eu lembro-me invariavelmente de uma quadra, de autor desconhecido, a qual, na minha juventude, aludia à interferência sarcástrica de duas desilusões, então com muito significado ético, mas hoje igualmente anómicas:

Teve o azar de casar
No dia de eleição
Pos o voto na urna
Não sentiu oposição

É assim, como pressente o povo bom e crente: mudam as moscas... Mais caravanas hão-de passar, nas autárquicas, nas legislativas, nas presidenciais... No dia da eleição, contam-se os cães que ladram (os votos), contam-se os que não ladram (as abstenções) e... tem razão o Zé Povinho: os que ladram, não mordem; outros mordem pela calada...